Lembranças de um esporte que aprendi a amar.

Lembranças de um esporte que aprendi a amar.


Tempo aproximado sugerido para leitura deste post: 5 min.

Lembranças de um esporte que aprendi a amar.

Lembro-me dos dias, ainda garotinho, quando meu pai, que era um amante do futebol, em especial do “seu” Corinthians, levava-me a ver Pelé jogar quando ele vinha ao interior paulista. Lembro-me do estádio em Araraquara, quando eu – entre 5 e dez anos, não me lembro exatamente, fugindo um pouco do jogo em si, explorava o espaço da parte de arquibancadas de madeira onde sentamos. Lembro-me de meu pai e de meus tios sentados assistindo o jogo. Era um jogo em que Pelé e o esquadrão santista, bi-campeão mundial enfrentava a Ferroviária.

Do jogo não lembro quase nada, mas lembro-me da atmosfera, da torcida, das cores branco e vinho dos dois times, de um tal canhão da vila (1) – que segundo meus tios tinha o chute mais forte do mundo, do Pelé, o maior jogador que o mundo já viu, e lembro-me dos pés que enxerguei quando me enfiei por baixo dos assentos de madeira em que estávamos. Hoje ainda me pergunto: será que foi assim mesmo? Será que entrei embaixo da arquibancada? Ou isso foi criado no meu imaginário de criança? Bem, na minha mente aquela imagem está presente, se real ou imaginária não consigo dizer, mas sei que aquelas cenas evocam bons sentimentos de tempos em que o futebol me inspirou muito.

Lembro que a Copa de 70 foi o primeiro evento ao qual realmente eu me conectei no jogo, em si. Foi quando aprendi a amar o futebol pelo jogo jogado, vendo craques por todo lado – vendo Pelé correndo e driblando, chutando com o pés esquerdo ou direito, cabeceando, ‘matando’ a bola e passando-a com tal categoria; vendo Rivelino, Clodoaldo, Carlos Alberto, Gerson, Tostão e Jairzinho – que beleza. Aquele esquadrão marcou em meu coração o amor pelo futebol bem jogado. Mas lembro-me de craques de outros times também. Nunca esqueci a maneira respeitosa e com admiração mútua como Pelé e Bobby Moore se cumprimentaram e trocaram camisas ao final de Brasil e Inglaterra ou do Beckembauer jogando com o ombro deslocado usando uma tipoia improvisada na semifinal entre Italia e Alemanha. E lembro-me de nosso técnico, o grande Zagallo. Nunca esqueci a cena dele entrando e, literalmente, atravessando o campo para defender um jogador brasileiro que havia sido duramente atingido pelo adversário, acho que foi no jogo do Uruguai, se não estou enganado.

Em casa, com meu pai ou com meus tios, muito escutei sobre as Copas de 1958 e de 1962. Mais tarde, vendo vídeos de jogos daquelas copas eu os povoava com as lembranças daquelas conversas que eu ouvia quando garoto. Vendo as cenas dos vídeos eu rememorava o que falavam do Pelé, Didi, Gilmar, Zito, Nilton Santos, Zagallo, Garrincha, etc.

O tempo passou, e algumas vezes me pergunto: o que teria sido do futebol brasileiro, se não tivéssemos tido técnicos como Vicente Feola, em 1958, que convocou ‘e bancou’ um ‘garoto‘ e um ‘jovem rapaz‘ de 24 anos que, segundo o psicólogo da seleção na época, parecia não ter aptidões intelectuais para acatar orientações técnicas e estratégias?
Bem o ‘garoto‘ era Pelé, que com 17 anos fez gols decisivos desde as quartas de finais até a final, fazendo três na semifinal e dois na final – isso com 17 anos de idade. Mais tarde viria a ser coroado como atleta do século XX e maior jogador de futebol de todos os tempos. Já o ‘jovem rapaz’ de 24 anos, que segundo o psicólogo não estava preparado, era Garrincha, um dos jogadores mais talentosos que o mundo já viu e que encantou as torcidas na Copa da Suécia com seus dribles pela direita e que viria, quando Pelé se machucou em meio à Copa de 62, tornar-se o grande nome da Copa que seria vencida pelo Brasil pela segunda vez.

Como amante de futebol, a pergunta que me ocorre é simples: o que teria sido do futebol brasileiro – e mesmo mundial, se os técnicos, em especial das seleções de 1958 e de 1970 não tivessem feito o que fizeram?
Imagine se os técnicos fossem apenas ‘racionais‘ e ‘estudiosos‘ de futebol? Fazendo uma viagem no tempo, indo a 1958, o que, um técnico apenas baseado na técnica e na lógica faria? Muito possivelmente, esperaria um garoto de 17 anos (2) amadurecer para convocá-lo quando estivesse ‘pronto‘ e ‘nunca‘ convocaria um ‘peladeiro(3) que, na opinião de especialistas, não sabia diferenciar um jogo em Pau Grande sua cidade, jogando descalço e sem camisa, de um jogo no Maracanã lotado. Como pode convocar alguém que amava e levava a sério, do mesmo jeito, jogar uma final no Maracanã ou uma ‘pelada‘ nas ruas de terra de sua cidade? E viajando a 1970, pensemos: quem mais, além do, então jovem técnico de 38 anos Mario Jorge Lobo Zagallo, seria ‘maluco‘ de colocar quatro camisas 10 para jogarem juntos no ataque de um único time (ver nota 4), ou que colocaria um meio de campo para jogar de quarto zagueiro durante a Copa toda?

O que vejo em comum nos técnicos de 1958 e 1970?
Ambos foram sábios o suficiente para acreditarem no jogo bem jogado, mais que em teorias pré-estabelecidas. Eles foram visionários e pioneiros, cada um de seu jeito.

O que aconteceu?
Eles estabeleceram novos paradigmas, cada um a seu modo, que acabaram servindo de modelo ou que mostravam tendência com ‘décadas de antecedência. Já em 1958, Zagallo era um atacante que voltava para ajudar na marcação e Nilton Santos um lateral esquerdo que costumava atacar. E isso não existia na época. E em 1970, além de ser um visionário que privilegiou o bom futebol juntando vários craques no mesmo time e estabelecer uma tática que ainda não existia no futebol, Zagallo também inovou ao privilegiar o trabalho da equipe técnica, juntando vários especialistas, como Cláudio Coutinho e Parreira, então preparadores físicos, que posteriormente se tornaram técnicos de excelência.

Juntando-se à lista das grandes lembranças e das grandes seleções, a de 1982, com Telê Santana, em mim deixou o mesmo impacto da de 1970, apesar de não ter vencido a copa. Mas, apesar de não ser vencedor de Copa, Telê Santana é outro visionário do futebol que acreditava no futebol bem jogado. E deixou lembranças e admiração entre os que amam futebol ao redor do mundo. Foi uma pena, mas o Brasil acabou perdendo a Copa, apesar do belíssimo futebol apresentado.

Como todo pioneiro, esses técnicos nunca foram unanimidade e foram muitas vezes criticados. Mas, com eles, o futebol brasileiro tornou-se tricampeão mundial e, mesmo em 1982, quando perdeu, deixou ótimas lembranças.

Nos últimos tempos, o Brasil apresentou um resgate ao futebol bonito e bem jogado com o futebol feminino – em especial, com a craque Marta, seis vezes eleita a melhor do planeta e, no futebol masculino, com o estilo de jogo apresentado pelo técnico Fernando Diniz. Espero que o legado de Marta inspire técnicos e técnicas a serem visionários e visionárias e as garotas e garotos a acreditarem e amarem o futebol bem jogado. E que técnicos como Fernando Diniz continuem a ser corajosos e visionários.

Por despertarem o meu amor ao futebol bem jogado, deixo aqui meu obrigado ao meu pai, meus tios, aos jogadores-artistas e aos técnicos visionários e corajosos que suscitaram estas lembranças que acabo de compartilhar.
Em especial compartilho meu sentimentos junto aos familiares do campeoníssimo Mário Jorge Lobo Zagallo, cuja nota de falecimento, hoje, suscitou em mim estas lembranças que acabo de compartilhar.

Nota 1: Canhão da vila: Pepe, ponta esquerda, maior artilheiro da história do Santos depois de Pelé.
Nota 2: O garoto de 17 anos trata-se de Pelé ( o maior jogador de futebol de todos os tempos).
Nota 3: O jovem rapaz trata-se de Garrincha (eleito o melhor da Copa de 1962).
Nota 4: Os Quatro camisas 10 que jogaram juntos no ataque de da selação em 1970 foram: Pelé, Tostão, Rivelino e Jairzinho. E ainda tinha um outro camisa 10 naquela seleção, que era o craque Gérson que jogava no meio de campo.

Para ver fotos do estádio Fonte Luminosa em Araraquara: http://ferroviariaemcampo.blogspot.com/2019/04/estadio-da-fonte-luminosa-anos-70.html

texto: Herbert Santos Silva
Site: Intuicao.com
Imagem topo página: Pixabay