A Garota Montanhesa – Minilivro 2

Na sequência da série Ouvindo as Estrelas, somos convidados a seguir as trilhas da alma junto à surpreendente Garota Montanhesa — uma figura que corporifica a sabedoria silenciosa das alturas e a leveza dos ventos. Neste encontro são  revelados ensinamentos que não se encontram em livros, mas nas raízes, no tempo e na vida dos habitantes originais dos solos canadenses.

Ao longo da jornada, o leitor é guiado por reflexões sobre as Leis da Natureza, a Sintonia e Correspondência entre seres e elementos, e os Dons e Brilhos que cada um carrega em si. 

Com sensibilidade poética e profundidade filosófica, A Garota Montanhesa é um convite à escuta interior, à experimentação sincera e ao desapego necessário. Ao final, sua despedida não é um adeus, mas uma passagem — como o vento que bate e a brisa que acaricia.

(tempo médio de leitura- 25 min)

Ferhélin no outono das Montanhas Rochosas

A seguir, para sua apreciação, o texto completo do minilivro 2

Na sequência da série Ouvindo as Estrelas, Ferhélin nos conduz por trilhas que não estão nos mapas, mas na alma. Neste segundo minilivro, ela encontra a Garota Montanhesa — uma figura que corporifica a sabedoria silenciosa das alturas e a leveza dos ventos. Juntas, elas compartilham ensinamentos que não se encontram nos livros, mas nas raízes e no tempo dos habitantes originais dos solos canadenses.

Ferhélin nasceu no interior paulista, é graduada em Física e especializada em Mecânica Quântica. Atua como professora e pesquisadora, mas sua jornada vai além da ciência. Desde a infância, aprendeu a cultivar o equilíbrio entre conhecimento, espiritualidade, arte e movimento. Apaixonada por música, literatura, natação e caminhadas, vê em cada experiência uma oportunidade de escuta e expansão.

À época dos encontros narrados, Ferhélin estava prestes a completar 30 anos. Jovem de olhos castanhos e cabelos da mesma cor, que caem suavemente até os ombros, sua presença transmite serenidade e curiosidade. Seu olhar atento e expressão tranquila revelam uma alma que escuta o mundo com sensibilidade e profundidade.

Foi após publicar um artigo científico que recebeu um convite para apresentar seu trabalho no Canadá. Aceitou — e foi ali, entre montanhas e céus estrelados, que começou a viver encontros transformadores. Cada minilivro da série compartilha um desses momentos, e este revela uma conexão ancestral com as Leis da Natureza, a Sintonia entre seres e elementos, e os Dons e Brilhos que cada um carrega em si.

Com sensibilidade poética e profundidade filosófica, A Garota Montanhesa não é apenas uma personagem: é um convite à escuta interior, à experimentação sincera e ao desapego necessário. Ao final, sua despedida não é um adeus, mas uma passagem — como o vento que bate e a brisa que acaricia.

Encontrando a Garota Montanhesa

Há um brilho sutil no ar,
nos sentimentos e no viver!

No dia seguinte ao encerramento da conferência, ela embarcaria numa jornada singular — talvez a mais marcante de sua vida. E é agora que você começa a descobrir como tudo aconteceu.

Desde que deixou a charmosa cidade das flores, Victoria, Ferhélin percorreu centenas de quilômetros, surpreendendo-se com a diversidade de paisagens que desfilavam diante de seus olhos. Florestas densas, lagos cristalinos, desertos semiáridos, vales glaciais e, por fim, imponentes cadeias de montanhas. Cada cenário, tão distinto e ao mesmo tempo tão encantador, parecia conversar com ela em silêncio.

Optou por viajar com uma agência especializada em pequenos grupos que cruzavam a América do Norte em roteiros despojados — sem luxo, mas com um “astral legal”, como ela mesma constatou. Compartilhava o trajeto com jovens de diferentes origens, todos habituados à simplicidade e à liberdade que aquele tipo de transporte oferecia.

Após um dia inteiro de estrada, com pausas estratégicas para descanso e refeições em locais escolhidos pela beleza e atmosfera, o grupo chegou ao Canyon Mistaya, já nas Montanhas Rochosas Canadenses. A pousada onde se hospedariam ficava a alguns quilômetros da autoestrada, imersa entre montanhas silenciosas. Ali permaneceriam por dois dias.

Na manhã seguinte, com o céu ainda em tons suaves, Ferhélin preparou um chá e serviu frutas e cereais. Como sempre, seguiu sozinha por uma trilha que serpenteava entre árvores altas. Sentia-se caminhando sobre um tapete dourado, formado por folhas caídas. Flores discretas espiavam entre os arbustos, ainda úmidas com o orvalho da madrugada.

O sol surgia tímido, filtrado por nuvens esparsas. Uma águia solitária cortava o céu em voo majestoso. Ferhélin sentiu a brisa fria tocar seu rosto e, por um instante, o tempo pareceu suspenso.

Ao longe, uma geleira prateada reluzia em contraste com os tons quentes do outono que pintavam as montanhas ao redor. Naquele momento, gravado em seu coração, ela percebeu a linguagem silenciosa da natureza — uma comunicação feita de cor, vento e presença. E sentiu-se parte viva daquele cenário deslumbrante.

O Vento bate, a Brisa acaricia

Com olhos castanhos claros e cabelos encaracolados que caíam soltos sobre os ombros, Ferhélin, aos vinte e nove anos, sentia-se menina outra vez.

Estava a cerca de vinte metros acima do rio, sobre uma antiga ponte de ferro, agora em desuso. Lá embaixo, a água verde-prata corria entre pedras, cintilando sob a luz suave do início do outono. À frente, uma montanha imponente se erguia, parte de uma cadeia que se estendia pelo vale. As folhas das árvores começavam a mudar de cor — do verde ao amarelo, do dourado ao marrom-avermelhado. Atrás dela, a trilha por onde viera se perdia entre as árvores. Ao longe, mais montanhas desenhavam o horizonte.

A ponte, com seus arcos enferrujados e estrutura vazada, oferecia uma vista privilegiada do rio e do vale. Ferhélin sentou-se ali, envolvida pela brisa fresca, ouvindo o som das águas e sentindo-se acolhida pelas montanhas ao redor.

O tempo parecia suspenso quando, à distância, avistou uma jovem se aproximando. Morena clara, cabelos presos em rabo de cavalo, vestia uma saia longa e blusa de mangas compridas em tom bege. Tinha um sorriso discreto e aparentava entre quinze e dezessete anos.

Ferhélin, tranquila e integrada à paisagem, observou a garota com curiosidade. “Talvez seja uma jovem aborígene canadense”, pensou.

— Olá! — disse Ferhélin.

— Olá! — respondeu a garota, aproximando-se com leveza.

Fitando as montanhas, ela disse com naturalidade:

— O vento bate. A brisa acaricia.

Ferhélin sorriu, surpresa com a poesia daquelas palavras. Ficou em silêncio por alguns segundos, absorvendo o significado.

— Podemos aprender a entender a linguagem da natureza. Agora a brisa está acariciando você — disse a garota, com um olhar sereno.

Ali começava uma nova etapa da jornada de Ferhélin — encontros que atravessariam as Montanhas Rochosas e tocariam tanto sua razão quanto seu coração.

— O que você acha daqui? — perguntou a jovem, sentando-se à sua frente.

Ferhélin olhou ao redor, sentindo a força suave do lugar. As roupas da garota, simples e tradicionais, revelavam mais tarde sua origem: ela pertencia ao povo conhecido como First Nation’s People, os aborígenes canadenses.

— Estas montanhas são especiais — disse Ferhélin. — Têm suavidade, poder e beleza.

— Sim, elas têm tudo isso — confirmou a garota.

— É como se falassem — completou Ferhélin, com os olhos brilhando.

Leis da Natureza

Ferhélin permaneceu em silêncio, absorvendo cada palavra da jovem. A ideia de que a montanha pudesse ouvir seu espírito não lhe parecia absurda — ao contrário, fazia sentido naquele cenário onde tudo parecia vivo e consciente.

— A natureza não julga — continuou a Garota Montanhesa. — Ela apenas revela. Quem chega até aqui com o coração aberto, recebe respostas. Mas quem tenta esconder o que sente, não escuta nada.

Ferhélin olhou para o chão coberto de folhas, para as rochas que sustentavam a ponte, para o céu que começava a se abrir em tons azulados. Sentia-se atravessada por uma verdade que não vinha de fora, mas brotava de dentro.

— Então, a lei da natureza é a transparência? — perguntou, quase num sussurro.

— É a sinceridade do espírito — respondeu a jovem. — A montanha não exige palavras. Ela entende gestos, silêncios, intenções. Ela sabe quando alguém está pronto para ouvir.

Ferhélin respirou fundo. Sentia-se como se estivesse sendo lida por aquele lugar — como se cada pensamento, cada emoção, estivesse sendo acolhido pelas árvores, pelas pedras, pelo vento.

— E se eu não souber o que estou buscando? — perguntou.

— A montanha também entende isso. Às vezes, o que buscamos não tem nome. Mas o caminho até aqui já é um sinal de que algo dentro de você quer ser encontrado.

As duas permaneceram em silêncio por alguns minutos. O som da água correndo abaixo, o farfalhar das folhas, o voo de um pássaro ao longe — tudo parecia compor uma sinfonia sutil, como se a própria natureza estivesse respondendo.

Ferhélin olhou novamente para a jovem. Havia algo nela que transcendia a idade — uma sabedoria ancestral, como se carregasse em si os ecos de muitas gerações.

— Seu avô, o Xamã… ele também escuta a montanha?

— Ele diz que escutar a montanha é como escutar a si mesmo. Só que com mais clareza.

Ferhélin sorriu. Pela primeira vez em muito tempo, sentia que não precisava entender tudo. Bastava estar ali, inteira, presente, aberta.

A brisa voltou a acariciar seu rosto. E ela soube, sem precisar de palavras, que estava começando a compreender as leis da natureza.

Sintonia e Correspondência

— Ao fazer esta escolha, nada pode ser escondido. Você a aceita? — perguntou a jovem, com um olhar curioso e inocente.

Ferhélin permaneceu em silêncio por alguns instantes. Apenas balançou a cabeça, concordando com o que havia escutado. Então, com o olhar voltado para as montanhas, perguntou:

— Se elas pudessem falar, o que diriam? Como enxergariam as atitudes humanas, destruindo tesouros que só trazem benefícios ao planeta e a todos nós? Como entenderiam tanta insensatez?

Fez uma pausa, como se esperasse uma resposta do próprio vale. Depois, continuou:

— Com sua firmeza e majestade, como a natureza compreende ações tão desconectadas da vida?

A jovem respirou fundo e, com os olhos fixos nas montanhas, compartilhou seus pensamentos:

— Para a natureza, a beleza e a harmonia não estão nas coisas que vemos, mas nos olhos de quem vê. Aprendi isso desde pequena, com meu avô, meu pai, minha mãe. Eles sempre me ensinaram que o olhar é o espelho do coração.

Ferhélin sorriu, tocada pela simplicidade da resposta. Após alguns segundos, perguntou:

— E como você entende essa beleza que está nos olhos de quem vê?

— Nunca pensei em entender… apenas aprendi que funciona assim. O que vemos reflete o que sentimos. É como se o mundo fosse um espelho do que carregamos por dentro.

Ela fez uma pausa e continuou:

— Veja, você está aqui, neste vale, cercada por montanhas, sentindo-se próxima de tudo. Está em sintonia com o que vê. Na verdade, você se conecta com o que deseja — ou com o que sente profundamente.

Ferhélin escutava com atenção. Cada palavra parecia abrir uma janela dentro dela.

— Desde criança, aprendi que tudo está interligado. Nossas relações começam com aquilo que escolhemos sintonizar: com a lua, o sol, os animais, as aves… ou com as pessoas.

— Minha mãe sempre diz que, ao observar a natureza, se você vê beleza, é porque há algo belo dentro de você. Hoje, entendo que há uma correspondência entre o que sinto e o que vejo.

A jovem olhou para Ferhélin com doçura e disse:

— Imagine que, neste mesmo lugar, você estivesse tomada por preocupações. Talvez não enxergasse nada ao seu redor, apenas seus próprios problemas. E se não visse beleza, não seria porque ela deixou de existir. Concorda?

Ferhélin assentiu, emocionada.

— A vida é assim — concluiu a jovem. — Há coisas especiais ao nosso redor o tempo todo. Mas, se a mente estiver ocupada demais, não conseguimos perceber. A sintonia é a chave. E a correspondência, o espelho.

Sobre dons e brilhos

Ferhélin observava a jovem à sua frente com admiração. Havia nela uma sabedoria que não se aprendia em livros, mas que parecia brotar da própria terra, como uma nascente silenciosa. Ao mesmo tempo, Ferhélin sentia uma alegria profunda — como se algo dentro dela estivesse despertando.

— Então, quando vejo algo errado e me enraiveço, estou me conectando com uma fonte de raiva que já existe em mim? — perguntou, ainda surpresa com a clareza da conversa.

A Garota Montanhesa assentiu com serenidade:

— Na maioria das vezes, sim. E em algumas poucas, não. Não é complicado. Se aprendermos a observar nossos sentimentos com calma, como os sábios fazem, conseguimos perceber a raiva sem nos deixar levar por ela.

Ela fez uma pausa, olhando para o rio que corria abaixo.

— Mas quando o coração e a mente não estão preparados, acabamos projetando o que sentimos no que vemos. E mesmo nas situações em que a indignação é legítima — diante de injustiças, barbáries — ainda assim, a raiva não é o melhor canal. O ideal é transformar essa energia em compaixão, em silêncio, em presença.

Ferhélin respirou fundo. O ar fresco, o brilho das folhas, o som da água — tudo parecia amplificar seus pensamentos. Sentia-se leve, como se estivesse em outra dimensão, onde as emoções fluíam com clareza e harmonia.

— Há momentos em que não podemos ajudar diretamente — continuou a jovem. — Nesses casos, é melhor aquietar a mente, contemplar a natureza, meditar. E, de alguma forma, enviar pensamentos de solidariedade aos que sofrem. Isso também é uma forma de agir.

Ferhélin olhou para o céu entre as copas das árvores. Sentia que algo dentro dela estava se reorganizando. Como se os muitos conhecimentos acumulados em viagens, estudos e conferências estivessem finalmente encontrando um lugar para florescer.

— O que tudo isso me trouxe? — pensou. — O que realmente ficou?

A Garota Montanhesa, como se lesse seus pensamentos, disse com suavidade:

— Às vezes, o brilho que carregamos não vem do que sabemos, mas do que sentimos. Os dons não estão nas conquistas, mas na forma como tocamos o mundo com o que somos.

Ferhélin sorriu. Pela primeira vez, compreendia que seus dons não precisavam ser exibidos — bastava que fossem vividos.

Ali, entre montanhas silenciosas e águas que sussurravam segredos, ela começava a descobrir o brilho que sempre esteve dentro de si.

sem pressa para viver

Ferhélin observava a Garota Montanhesa com admiração. Era evidente que ela não havia frequentado congressos nem acumulado diplomas — e, ainda assim, traduzia o conhecimento da vida com uma clareza que tocava o coração. Não falava com erudição, mas com verdade. E isso, Ferhélin começava a perceber, era o que realmente importava.

Ali, naquele encontro inesperado, iniciava não apenas sua jornada pelas Montanhas Rochosas, mas também uma travessia interior — uma viagem rumo às descobertas do coração. Sentia-se atravessando barreiras invisíveis, aquelas que a vida moderna ergue com rigidez e medo, disfarçados de certezas e provas concretas.

— Há acontecimentos que parecem carregar um brilho próprio — comentou Ferhélin, olhando para o vale. — Pode ser uma montanha, um rio, uma pessoa, um animal, um cristal, um aroma, um lago, uma nuvem… não importa. É como se cada ser tivesse algo único, uma espécie de magnitude que o torna mais vivo, mais reluzente. Você vê assim?

A jovem sorriu com simplicidade e respondeu:

— Brilho.

Ferhélin permaneceu em silêncio, absorvendo a resposta. A garota então continuou:

— Quando vejo o sol, sinto que ele fala comigo através do seu brilho. O mesmo acontece com as estrelas. Elas expressam seus dons naturais. Olhe para o rio lá embaixo… parece feito de diamantes. Veja os animais, as aves… sinta seus olhares. E com as pessoas também é assim. Elas funcionam conforme o brilho que se permitem expressar.

Ferhélin sentia cada palavra como uma brisa suave que tocava sua alma.

— Quanto mais alguém expressa seus dons, mais brilho traz à própria vida. Esse brilho não pode ser escondido. Mas muitos o sufocam, presos às preocupações do passado ou à ansiedade pelo futuro.

A jovem olhou para o horizonte e concluiu:

— A natureza vê o tempo de outro modo. O passado e o futuro estão sempre presentes nela, integrados ao agora. Tudo acontece no momento presente.

Ferhélin refletiu em silêncio. Aquela visão do tempo — livre, fluida, sem pressa — parecia dissolver os nós que carregava há anos. Ali, entre montanhas e murmúrios de rio, ela compreendia que viver não era correr atrás de algo, mas permitir-se estar. E estar, com brilho, era suficiente.

sementes, frutos e raízes

— É preciso deixar os sentimentos fluírem enquanto se respira — disse a Garota Montanhesa, com voz serena. — Respirar com consciência, sentindo o ar visitar o corpo sem pressa, é o primeiro passo. O coração então lembra: não há urgência em viver. A natureza expressa seus dons com naturalidade. O ser humano, por outro lado, perdeu essa espontaneidade. Por isso, precisa reaprender.

Ela falava com simplicidade, mas suas palavras carregavam profundidade.

— Se está sempre em movimento, é hora de reaprender a parar. Se pensa demais, que aprenda a meditar. Se vive afogado em metas, que reaprenda a sonhar. Se tem métodos para tudo, que reaprenda a criar. Se só enxerga o concreto, que reaprenda a imaginar. Se fala demais, que reaprenda a ouvir.

Ferhélin escutava com atenção. Sentia que cada frase tocava algo adormecido dentro dela.

— No fundo — continuou a jovem — o que falta é escutar o que o coração está sentindo. A natureza nunca esconde seu coração. É fácil perceber quando ela está feliz ou triste. Já o ser humano parece querer esconder que tem um.

Ferhélin foi atraída pelo brilho especial de uma árvore à frente. A Garota Montanhesa seguiu seu olhar e disse:

— Quando uma semente é plantada, ninguém sabe exatamente o que nascerá. Os frutos, as folhas, os aromas, as cores… tudo permanece incógnito por muito tempo. Enquanto está enterrada, a semente vive em silêncio, acolhida pela terra. Mas está viva. E, aos poucos, começa a ocupar seu espaço, expandir-se, crescer. Depois vêm os frutos e as flores. Mas o alimento continua vindo das raízes — invisíveis, silenciosas, essenciais.

Ferhélin sentia que aquelas palavras não eram apenas sobre árvores. Eram sobre ela.

— O ser humano abandonou esse processo — disse a jovem. — Esqueceu de se alimentar internamente, de voltar-se para dentro. Esqueceu suas raízes, onde moram qualidades que existem antes de qualquer intelectualização da vida.

Ela fez uma pausa, depois continuou:

— A natureza obedece às leis naturais. E a principal delas é a harmonia. O ser humano nasce com qualidades que já estão nele: paz, amor, simplicidade. Todas obedecem à mesma lei — a lei da harmonia. Veja, tudo e todos buscam harmonia: rios, aves, animais… e nós, pessoas.

A Garota Montanhesa parecia envolta em luz. Seus olhos calmos reforçavam cada palavra.

— Cada pessoa tem uma série de qualidades, mas muitas nem percebem. Imagine um trem, com sua locomotiva e dezenas de vagões.

Ferhélin visualizou os trens canadenses que vira nos primeiros dias de viagem — imensos, com mais de cento e cinquenta vagões.

— Para o trem se mover, a locomotiva precisa puxar tudo — explicou a jovem. — Meu avô diz que cada pessoa tem uma qualidade que funciona como sua locomotiva. Para alguns, é a felicidade. Para outros, o entusiasmo, a serenidade, a simplicidade. Quando alguém expressa essa qualidade-locomotiva, outras vêm junto. Os dons se manifestam. E isso inspira os outros. É assim que o brilho acontece.

Ela fez um gesto com a mão, como se voasse pelo vale.

— Há um brilho sutil no ar, nos sentimentos, no viver. Se a locomotiva é o entusiasmo, virão a cooperação, a alegria, a generosidade. E assim vai.

Então, olhando nos olhos de Ferhélin, perguntou com doçura:

— Você já sabe qual é a sua?

sobre qualidades, trens e uma locomotiva

Ferhélin suspirou profundamente. Expeliu o ar devagar, depois inspirou o máximo que conseguiu, como se quisesse trazer clareza para dentro de si. Permaneceu em silêncio. Sabia que ainda não tinha uma resposta.

Depois de alguns minutos, olhando para a Garota Montanhesa, perguntou com sinceridade:

— Como vou descobrir essa qualidade-locomotiva?

A jovem sorriu com ternura, como quem já havia escutado essa pergunta muitas vezes.

— É algo especial que vive em você. Está no seu coração. Talvez ainda não tenha se revelado, mas não se preocupe — ela não desaparece. O que pode acontecer é você adiar o momento de reconhecê-la.

Ferhélin escutava com atenção, sentindo que aquelas palavras tocavam algo profundo.

— A pergunta que ajuda é simples — continuou a jovem. — Se você tivesse que escolher uma única qualidade, qual seria? Qual delas faz a verdadeira diferença para você?

Ferhélin fechou os olhos por um instante. Pensou em tantas qualidades que admirava — coragem, leveza, generosidade, sensibilidade. Mas qual delas a movia?

— Procure sentir — disse a Garota Montanhesa. — Você tem várias qualidades, mas uma delas funciona como sua locomotiva. É aquela que, quando expressa, faz outras surgirem. É aquela que inspira você… e inspira os outros também.

Ferhélin sentia que estava diante de uma chave. Uma chave que não abria portas externas, mas internas.

— O segredo está em você mesma — reforçou a jovem. — Não importa se é uma ou mais de uma. O importante é vivenciá-las sempre que puder. Porque quando você vive sua qualidade-locomotiva, tudo ao redor começa a se alinhar. Os dons se manifestam. O brilho aparece.

Ferhélin olhou para o vale, para o céu, para o rio. Sentia que algo estava prestes a emergir. Não uma resposta pronta, mas uma descoberta viva — que viria com o tempo, com a escuta, com a presença.

Ali, entre montanhas e murmúrios, ela compreendia que sua jornada não era sobre procurar respostas, mas sobre permitir que elas florescessem.

experimentando e sentindo

Ferhélin permanecia em silêncio, sentada sobre a velha ponte de ferro, enquanto a brisa acariciava seu rosto e os sons do rio compunham uma melodia suave ao fundo. A Garota Montanhesa, com seus olhos vivos e expressão serena, parecia brincar com o ar, feliz por compartilhar aquele momento com sua nova amiga.

As palavras da jovem ainda ecoavam em sua mente: “Dê ao seu coração essa tarefa. Ele terá a resposta.” Ferhélin compreendia, agora mais do que nunca, que o coração tem seu próprio tempo — um tempo que não se mede em minutos, mas em sensações.

Ela começou a se permitir sentir. Não pensar, não analisar — apenas sentir.

Primeiro veio o amor. Ao evocar essa qualidade, uma energia intensa e envolvente tomou conta de seu corpo. Sentia-se preenchida por uma nascente interna, como se o amor brotasse de dentro e se espalhasse ao seu redor. Havia entusiasmo, generosidade, gratidão. Uma luz rosa parecia envolvê-la, e ao longe, como se viesse de dentro dela, sons suaves de harpa se revelavam.

Depois veio a paz. Uma onda de frescor e leveza invadiu seu interior. Sentia-se banhada por uma luz branca, serena, como se estivesse flutuando em harmonia com tudo ao seu redor. A natureza parecia respirar com ela. Tudo estava em equilíbrio — dentro e fora.

Em seguida, pensou na coragem. Uma energia dourada a envolveu, firme e protetora. Sentia-se invulnerável, íntegra, como se nada pudesse fragmentá-la. Era como estar em estado puro, onde independência e interdependência coexistiam em perfeita harmonia. Havia simplicidade em seus gestos, e uma força silenciosa pulsava em seu peito.

Naquele instante, Ferhélin não buscava respostas. Ela vivia as perguntas. Cada qualidade que surgia era uma experiência, uma vivência, uma revelação. E naquele silêncio sagrado, entre o frescor da brisa e o sussurro do rio, ela compreendia que sentir era, talvez, a forma mais profunda de saber.

A Garota Montanhesa a observava com ternura, respeitando o tempo do coração. Sabia que Ferhélin estava em processo — e que esse processo era precioso demais para ser apressado.

Ali, entre montanhas e sussurros da natureza, Ferhélin experimentava o que há de mais essencial: a beleza de sentir.

despedindo-se da garota montanhesa

Após longo tempo em silêncio, dirigiu-se à Garota Montanhesa e expressou o que havia sentido:

— É engraçado, fui lembrando-me das qualidades e sentindo cada uma delas. Todas se semelhavam em importância e, conforme ia experimentando-as, elas amplificavam-se dentro de mim. Pareciam acender-se assim que eu me lembrava delas. Cores, quietude e sons suaves pareciam estar presentes. A experiência pareceu dizer-me que elas já estavam dentro de mim. Eu apenas as ativava e, aos poucos, ia me sentindo abraçada, iluminada e preenchida por uma energia especial. É como se elas se acendessem em mim como luz — sussurrou Ferhélin, feliz e excitada com a experiência que acabara de ter. 

E logo que começava a sentir uma delas, outras qualidades vinham junto e as experimentava igualmente. Elas pareciam vir conjugadas. 

Respirou mais pausadamente, como que reverenciando as palavras que começavam a existir assim que seus lábios se movessem. Então falou:

— Houve uma qualidade que pareceu se destacar. Foi a felicidade. Assim que a senti se espalhando por mim, a experiência que tive foi sublime. Sentir a energia de felicidade no nível sutil foi marcante.

Alguns segundos de silêncio aconteceram. A Garota Montanhesa envolta em luz, parecendo imersa nas ondas sutis de alegria que Ferhélin exalava ao revelar sua experiência, continuou a falar:

— Vivo para ser feliz. Quando me sinto alegre, percebo que muitas outras qualidades aparecem. Meu estado natural, em que sinto as qualidades brotando em mim e de mim para fora, é quando me percebo sorrindo. Entende? Não é o sorriso da face apenas, muitas vezes, ele não está visível. É algo mais sutil, talvez o sorriso da alma.

A Garota Montanhesa a observava com afeição e alegria. De maneira totalmente espontânea, o diálogo conduziu-se ao silêncio. A natureza parecia querer falar aos seus corações, e Ferhélin se rendeu àquela integração silenciosa entre as duas e a natureza. 

Assim elas permaneceram, até que a Garota Montanhesa se levantou e começou a dançar suavemente. E estendeu a mão para Ferhélin, que, de início, relutou, mas com a insistência meiga da outra levantou-se e também começou a balançar seu corpo delicadamente. Ambas pareciam encantadas e movidas à felicidade. Era o chamado da natureza para que, juntas, se expressassem. 

A água do rio abaixo parecia participar daquela dança. As folhas das árvores se movimentavam e a brisa brincava com suas faces enquanto seus cabelos voavam ao vento. Aos poucos, se deslocavam com leveza e harmonia por toda a extensão da velha ponte de ferro.

Ali estavam elas: a natureza, a Garota Montanhesa e Ferhélin, experimentando uma conversação sutil, usando a linguagem sagrada da confiança, do amor e do afeto, sem palavras, apenas dançando, uma na companhia da outra.

Após algum tempo, elas se olharam, se abraçaram e se despediram. Ambas começaram a caminhar de volta aos seus destinos. 

Logo, Ferhélin se veria subindo pela trilha que a levaria à pousada onde passaria a noite. 

Ferhélin caminhava lentamente pela trilha que a conduzia de volta à pousada. O céu começava a se tingir com os tons suaves do entardecer, e o ar carregava o frescor das montanhas. Cada passo parecia reverberar a experiência vivida — não apenas com a Garota Montanhesa, mas com ela mesma.

A lembrança da dança ainda vibrava em seu corpo. A leveza, a harmonia, o silêncio compartilhado. Era como se a natureza tivesse conduzido aquele encontro, como se o rio, o vento e as árvores tivessem sido cúmplices de uma conversa sem palavras, feita de gestos, olhares e sentimentos.

Ferhélin sabia que algo havia mudado. Não era uma mudança visível, mas uma transformação interna e muito sutil — como uma semente que começa a germinar em silêncio. A felicidade, sua qualidade-locomotiva, havia se revelado com suavidade, e com ela vieram outras luzes, outros brilhos, outras compreensões.

Ao chegar à pousada, olhou para trás. A velha ponte de ferro ainda estava lá, envolta pela brisa e pelo som do rio. Era como se guardasse em si o segredo daquele dia, como se tivesse testemunhado algo sagrado.

Ferhélin sorriu. Um sorriso da alma.

Jamais se esqueceria da Garota Montanhesa — nem do que ela lhe ensinou sem esforço, com a naturalidade de quem vive em sintonia com a vida. Aquele primeiro dia nas Montanhas Rochosas Canadenses, no belo Canyon Mistaya, seria para sempre um marco em sua jornada. Um ponto de partida para tudo o que viria.

E assim, com o coração leve e os olhos brilhando, Ferhélin sentia em seu coração: a montanha havia falado. E ela, enfim, havia escutado.

Ferhélin no outono das Montanhas Rochosas

Notas:

[1] São três os grupos de povos indígenas aborígenes do Canadá. Estes incluem Primeiras Nações, Inuit e Métis. 

[2] First Nation’s People: denominação dada aos povos originários, um dos três grupos indígenas do Canadá.

O Mestre Iogue

A série Ouvindo as Estrelas convida o leitor a acompanhar Ferhélin, uma jovem cientista em busca de sentido além das fórmulas e teorias. Em sua jornada pelas terras canadenses — especialmente entre os cenários majestosos das Montanhas Rochosas — ela vive encontros sutis e transformadores que a conduzem a uma nova forma de ver o mundo.

Cada minilivro é uma travessia entre paisagens externas e descobertas internas. A magia da natureza se entrelaça com reflexões profundas, revelações inesperadas e aprendizados que transcendem a lógica, tocando o espírito.

Ao longo da série, Ferhélin aprende a ouvir o que não se diz, a perceber o invisível e a integrar ciência e espiritualidade com leveza e sabedoria. Essas experiências, compartilhadas com o leitor em linguagem acessível e poética, revelam que há estrelas que só se escutam com o coração atento.

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